Uma breve conversa sobre: Terminalidade

Por Dra. Márcia Stephan e Dra. Germana Hunes**

“A morte não é um acontecimento, é um fenômeno a ser compreendido existencialmente.”
Martin Heidegger

A morte é um tema atual. Poucos a abordam com tranquilidade. Cada vez mais o profissional de saúde é inquirido sobre tópicos inusuais como ética, espiritualidade, diretivas avançadas de desejo bem como a terminalidade. Para além do aspecto profissional nós, humanos e mortais somos igualmente afetados pela questão do final da vida.

A morte é um fenômeno único e individual com o qual a vida biológica se encerra e é vivida apenas por quem está morrendo. Por mais íntimos que sejam os familiares, amigos, pais, filhos e pares amorosos não vivenciam a terminalidade, apenas o luto, a dor da perda. Todo homem nasce como outros homens e morre de forma única. Quem não ouviu o bordão: para morrer basta estar vivo! Começamos a morrer no nascimento e esta possibilidade nos acompanha diuturnamente. É um processo e segundo Araújo e Vieira acontece a cada momento da vida.

Os animais percebem por observação da ancestralidade o fenômeno da morte como constatamos, por exemplo, nos cemitérios de elefantes que se retiram da manada ao se sentirem improdutivos. Não são, porém, capazes de reflexão sobre o próprio desaparecimento.

A espécie humana tem a habilidade de antecipar a chegada da morte, e ponderar sobre seu significado. O conceito de vida após a morte é eminentemente humano e pertente ao domínio da espiritualidade. Para a ciência é considerado doxa que contrariamente a episteme, o saber verdadeiro, foi considerada pelos sofistas saber popular, opinião, crença e está também imbricada nas reflexões sobre a terminalidade. A morte é o final das possibilidades da vida biológica. Não se deixa de morrer por não aceitar a morte ou acha-la injusta.

A primeira palavra que associamos à morte é medo. Medo é o estado emocional que surge em resposta à consciência perante uma situação de perigo. A percepção da ameaça à sobrevivência ou à vida faz com que o cérebro ative involuntariamente uma série de compostos químicos que provocam suas reações características; aumento da frequência cardíaca, aceleração na respiração e tensão nos músculos, sudorese, boca seca, etc. Lutar ou fugir são as duas reações básicas a ameaças ativadas pelo Sistema Nervoso Autônomo e estão na base do mecanismo de estresse.(3)

O medo é uma reação programada na nossa herança genética visando a manutenção da vida. Ter medo ao considerar a morte abrange considerações imponderáveis tais como: como vou morrer, vou sofrer, perderei a dignidade, como ficarão os que amo, meu trabalho, meu legado, serei lembrado? Como e quando será?

A morte é um evento que só se experimenta uma vez. Ninguém sabe como é, e não há ensaio. É uma experiência solitária. Se nos fosse dada a escolha, preferiríamos morrer dormindo e não é à toa que na língua inglesa diz-se “a millionaire’s death” para os que assim partem.

Falar de vida é falar do tempo. De acordo com a mitologia Grega o deus que personifica o tempo é Cronos. Trata-se do tempo cronológico, físico e compreendido como a sua divisão em anos, meses, dias, horas, minutos, segundos, etc. Compreende a medição do tempo e serve para orientação. Já Kayrós, o filho mais novo de Zeus, representa o tempo não linear, que não se mede ou determina. Alude à passagem do tempo, a percepção do tempo vivido, a oportunidade que nos é oferecida entre o nascer e o morrer.

O nascimento é determinado, mas a morte não! Não se sabe como e quando nossas possibilidades terminam. O tempo é fugaz! Quem retarda a vida esperando a vinda de melhores dias, adia a felicidade e está matando o tempo.

Martin Heidegger, filósofo alemão (1889-1976) (1) dedicou-se ao estudo do tempo. Dividiu sua passagem em três etapas (estases). O Vigor do Ter Sido, O Instante e o Porvir. O Vigor do Ter Sido, o que vivemos, que nos constitui e que continua em voga a nos influenciar.

O Porvir que ainda não aconteceu, mas que nos determina, pois temos um projeto de vida e fazemos hoje, o que imaginamos ser adequado para o porvir. O Instante é o que vivemos agora, que ao pensar já passou e que, portanto, é o único momento possível de viver.

O Vigor do Ter Sido passou e o Porvir nunca está ao alcance terminando com a morte. Jimmie Holland, psiquiatra americana recém falecida aos 86 anos, fundadora da Psico-Oncologia, foi considerada a primaz do conceito de compaixão para o exercício das profissões da saúde.

Sua meta era a melhoria da qualidade de vida dos pacientes oncológicos sua família e das equipes de saúde. Jimmie afirma que, precisamos ter mais repertório do que protocolos, pois estes não dão conta das questões existenciais e é com a nossa Humanidade que podemos alcançar outro ser humano.

Pergunta o que o antigo médico de família carregava em sua maleta e responde: comunicação, cuidado e generosidade e responde que a mágica que o Doutor operava com tão pouco era o acolhimento.

Uma de suas declarações que resumem seu pensamento e podemos aproveitar é “O que o paciente quer e sempre quis é saber que o seu médico se importa com ele, com o que pode acontecer, e que vai oferecer o melhor tratamento”.

Reforça-se, então, o conceito da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre os Cuidados Paliativos: abordagem que busca qualidade de vida dos pacientes e seus familiares diante de doenças ameaçadoras da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento por meio da identificação precoce e avaliação impecável e tratamento da dor e outros problemas físicos, psicossociais e espirituais. (4)

A abordagem do sofrimento é alicerçada em quatro principais pilares que sustentam a boa prática na saúde: uma comunicação que deve ser clara, empática, acolhedora e que permita decisões compartilhadas; trabalho em equipe multiprofissional, objetivando uma abrangência ampla do ser humano, com toda sua complexidade, principalmente diante da terminalidade; um adequado controle de sintomas e ações baseadas nos princípios da bioética.

Principalmente nos países desenvolvidos, houve uma redução significativa de pessoas que morrem por doenças transmissíveis ou infecciosas e de acordo com a OMS, em 2030, as doenças não transmissíveis representarão mais de três quartos de todas as mortes no mundo. Por exemplo, considerando apenas a área oncológica, a previsão para o ano citado é de 21,4 milhões de novos casos de câncer no mundo com 13,2 milhões de morte por câncer. Sendo que 70% desses óbitos acontecerão em países em desenvolvimento, nos alertando para imensa necessidade de aprimorar o cuidado paliativo em nosso país.

Mesmo com todo o progresso atingido pelo movimento Hospice, iniciado na década de 60 pela Dame Cicely Saunders na Inglaterra, muitas lacunas ainda permanecem, em sua maioria nos países em desenvolvimento. Anualmente, mais de 100 milhões de pessoas, dentre familiares, cuidadores e pacientes necessitarão de cuidados paliativos e menos de 8% terão acesso a esses serviços, segundo a Palliaitive Care Alliance World.

O alívio de problemas físicos, psicossociais e espirituais pode ser alcançado em mais de 90% dos pacientes com doenças avançadas através dos cuidados paliativos. Vale ressaltar que a abordagem paliativa não inclui apenas o cuidado de fim de vida, mas sim a abordagem adequada do sofrimento para todos os pacientes que possuem doenças ameaçadoras da vida. Frisar tal aspecto nos traz a certeza de estarmos falando de uma área de conhecimento não exclusiva de paliativistas, mas que deve sim ser de amplo conhecimento de todos os profissionais de saúde que se propõe a lidar com pacientes que sofrem. De forma mais clara, defende-se que o cuidado paliativo geral deve ser promovido como parte do tratamento integral do paciente por profissionais responsáveis por seu acompanhamento e abrange ainda pacientes com sintomas de baixa complexidade. Já o cuidado paliativo especializado é promovido por especialistas que fazem parte de uma equipe interdisciplinar de experts e engloba pacientes com sintomas mais complexos, com necessidade de suporte espiritual, psicossocial, cultural e ao luto, visando assim um cuidado integral ao paciente e à família. (5)

A integração precoce do cuidado paliativo na linha de cuidado dos pacientes proporciona melhora da qualidade de vida, adequado controle de sintomas, aumento da satisfação do paciente e do cuidador, auxilia pacientes e familiares na compreensão da doença e na comunicação, gera qualidade dos cuidados de fim de vida auxiliando no processo de boa morte, pode gerar aumento da sobrevida e ainda acarreta uma utilização dos recursos de forma mais racional. (6)

Mesmo com todo o avanço tecnológico na área da saúde, inevitavelmente, cada vida humana chega ao seu final e assegurar que isso aconteça de uma forma digna, cuidadosa e menos dolorosa possível merece tanta prioridade quanto qualquer outra.

Terminamos esta simples reflexão com a fala da geriatra paulista Ana Claudia Quintana Arantes.(7) Ela apresenta os arrependimentos de quem teve que adoecer para aprender a viver.

° Eu não escolhi a minha vida. Vivi o que era esperado de mim. Agora não dá mais para mudar, estou morrendo.
° Eu não demonstrei afeto. Escondi meus sentimentos por medo de ser rejeitado, do outro ficar convencido, por vergonha. Não demonstrei minha tristeza, minha raiva ou meu sofrimento. Não me apresentei verdadeiramente.
° Não aproveitei meus amigos, com quem tanto tenho em comum. Nem sempre é a família a companhia mais rica.
° Queria ter trabalhado menos. A vida não se divide entre durante e depois do trabalho.
Quero minha vida de volta! A sua vida nunca foi embora! Ela está aí e é a sua possibilidade atual. Ela não se mede nas férias, nos finais de semana ou na aposentadoria. Sua vida é o que você está vivendo agora!
° Gostaria de ter me feito mais feliz!

O tempo restante é sempre uma incógnita Carpe Diem

Referências
1-HEIDEGGER, M. Ser e tempo (1927), Partes I e II, tradução de Marcia Sá Cavalcante
Schuback, Petrópolis: Vozes, 2002. [Sein und Zeit, Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1977.]
2-Araújo, P.V.R.& Vieira, M.J.(2004 mai,jun)A questão da morte e do morrer .Brasília
(DF) Revista Brasileira de Enfermagem,57(3),361,363
3- Selye, H. The Stress of Life. 1956 Mc Graw-Hill Book Company New York
4 – http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/
5 – Cherny N., Fallon M., Kaasa S., Portenoy RK, Currow D. Oxford Textbook of Palliative
Medicine, Fifth Edition. 2015
6 – Hui D, Bruera E. Integrating Palliative Care into the trajectory of cancer care. Nature
Reviews, 2016
7 – Arantes A. C. Q.Quais os 5 arrependimentos de quem está morrendo .

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