Por Dra Maria Nagime
A Mastologia foi a especialidade que me escolheu desde o início da residência de cirurgia geral. Alguns paradigmas do câncer de mama estavam sendo mudados: o tumor de mama agora tinha subdivisões moleculares, o professor Veronesi consolidava a cirurgia conservadora como técnica oncológica, poupando muitas mulheres de realizar a tão pavorosa mastectomia, protocolos de rastreamento sendo desenvolvidos, a doença sendo socialmente popularizada por ações como Outubro Rosa.
Ao finalizar minha formação na residência de Mastologia no INCA eu precisava decidir. Fico no Rio de Janeiro com meus amigos ou volto para Campos dos Goytacazes para minha família? Decidi voltar. Aqui na minha cidade existe um ditado: “Quem bebe da água do Paraíba se apaixona pela cidade”.
Cheguei recém-terminada a residência, aquele ar jovial que levava a pergunta frequente das pacientes: Mas a senhora opera ? Tem certeza? Ter vindo da cirurgia geral também causava estranheza: “Não vai coletar meu preventivo?” Até explicar…
O tempo foi passando e fui construindo a percepção na rotina da prática da Mastologia.
Lutas com a doença, problemas pessoais e sociais importantes, pacientes com problemas psiquiátricos graves diagnosticados ou ainda não. Histórias lindas de superação e luta. Isso me inspira e me dá forças todos os dias.
Um caso que me marcou muito foi logo quando voltei para Campos. Era 2010 e eu estava iniciando meus atendimentos do dia. A segunda paciente daquela manhã me chamou atenção. A data de nascimento, se correta, daria a ela menos de 30 anos. No ambulatório da mama, essa idade é completamente fora de padrão.
Lembro-me perfeitamente do andar dela ao entrar no consultório com sua mãe. Olhar fundo e molhado de quem soltara muitas lágrimas em pouco tempo. Perguntei como sempre, em que poderia ajudar. Ela estendeu a mão com dois envelopes:
– Dra eu peguei esses dois resultados, preciso que me ajude.
O primeiro, um teste de gravidez positivo, o segundo, uma biópsia positiva para câncer de mama. “Já tenho uma filha e preciso cuidar dela, se não puder levar essa gravidez adiante tudo bem, eu prefiro me tratar”, ela disse com a voz trêmula.
Não entrei em detalhes sobre o que já tinha sido dito à paciente anteriormente, tentei acalmá-la e continuei a consulta. Ao examiná-la, um aperto no meu peito. Uma tumoração de quase 8 centímetros acometia a sua mama. Tão nova, tantos desafios a aguardavam.
Depois de acolhê-la, chequei todos os exames e solicitei alguns que faltavam. Liguei para a equipe da Oncologia e por tratar-se de paciente gestante em primeiro trimestre, fizemos a cirurgia.
O protocolo foi seguido e ela recebeu quimioterapia durante a gestação. Cada morfológico normal era uma vitória dela e minha. Eu sentia a alegria e responsabilidade sobre aquela mulher e seu bebê.
A data do parto foi se aproximando e, mesmo sem ser obstetra, fiz questão de acompanhar todo o planejamento. Todos estavam preparados para possíveis complicações tanto com a mãe quanto com o bebê. Nasceu uma linda menina e, ao contrário de sua mãe guerreira, muito cabeluda! Foi um dia de muita emoção para todos nós.
Essa paciente está até hoje livre da doença. Vem ao meu consultório de seis em seis meses com suas duas lindas filhas e sempre me faz lembrar o quanto podemos ser importantes na vida de alguém.
Câncer de mama em paciente grávida não é tão incomum. Essa em especial, me desafiou a personalizar condutas, fazer exceções às regras e a fortalecer o vínculo com meu time multidisciplinar.
Uma década depois, vislumbro uma nova quebra de paradigmas. Dessa vez, na prática médica como um todo. Não sei como será esse acolhimento, essa construção de afeto e o planejamento personalizado em épocas de telemedicina, atendimento a distância e inteligência artificial.
Temos o privilégio e o desafio de estarmos no meio da nossa carreira e poder ter vivido a medicina de antes, assistindo a implantação da medicina de amanhã. Torço para que as mudanças agreguem reforços positivos na prática médica, mas temo que sejamos tratados como um simples fluxograma. Lutemos sempre para valorizar a relação médico-paciente e a personalização de condutas, um dos maiores ganhos da última década, principalmente no tratamento do câncer de mama.
Sou apaixonada pela Medicina, pela Mastologia e espero poder continuar a cuidar de cada guerreira de maneira especial. Que consigamos ser humanamente inteligentes na era da inteligência artificial. Que consigamos ser sempre humanos.